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18 DE SETEMBRO DE 2023
Quarta edição do Fonape estimulou novo olhar para política de drogas
A quarta edição do Fórum Nacional de Alternativas Penais (Fonape), encerrada na última sexta-feira (15), abordou temas como sustentabilidade das alternativas ao encarceramento e experiências internacionais e nacionais sobre descriminalização e drogas, com um olhar especial para a América Latina. Os três dias de evento trataram do tema “Alternativas penais e políticas sobre drogas: caminhos para novos paradigmas no Brasil”, com o estado da arte das alternativas penais, os caminhos já percorridos e os desafios futuros, especialmente quanto à Lei 11.343/2006, a Lei de Drogas, e seus efeitos para o encarceramento.
Com mais de 350 participantes presenciais e mais de 4,3 mil visualizações por meio de transmissão no YouTube do CNJ, o evento do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) é parte das atividades do programa Fazendo Justiça, parceria com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) para acelerar transformações no campo da privação de liberdade. O evento teve ainda apoio da Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas e Gestão de Ativos (Senad) e da Secretaria Nacional de Política Penais (Senappen).
Um dos temas abordados durante a última tarde do evento foram os impactos das penas de multa envolvendo a Lei de Drogas. Juíza do Tribunal de Justiça de Pernambuco e mediadora da mesa, Lorena Victorasso disse que a tipificação de crimes relacionados às drogas é responsável por uma parcela significativa da população carcerária no Brasil. Ela enfatizou que as penas de multa agravam ainda mais o problema, considerando a realidade socioeconômica do país. “Para além da privação de liberdade, vamos observar essas novas ferramentas de controle que atingem de forma absolutamente desigual as pessoas mais pobres, negras, moradoras de periferia”.
Diretor executivo da Iniciativa Negra por Uma Nova Política sobre Drogas, Dudu Ribeiro traçou a linha do tempo da história da proibição das drogas no Brasil e como impactou desproporcionalmente a população negra. “É importante pensarmos que para essas pessoas terem seu cuidado enquanto uma pessoa usuária, ela precisa ter a sua unidade constituída para ser considerada digna desse cuidado”, explicou, ressaltando a necessidade da mudança de narrativas estigmatizantes.
Diretora executiva do Instituto de Defesa do Direito da Defesa, Marina Dias traçou um histórico das mudanças nas práticas de execução penal em São Paulo, pois no passado a pena de multa raramente era executada pelo Estado. Cenário este diferente dos dias atuais, resultando em obstáculos nas vidas dos egressos do sistema prisional, como por exemplo o cancelamento do CPF, que impactam o acesso a empregos formais, serviços financeiros e programas sociais. “Uma situação absolutamente perversa, uma verdadeira pena perpétua”.
Marina compartilhou informações sobre um mutirão de atendimento jurídico realizado pelo IDDD em parceria com organizações da sociedade civil, oferecendo assistência a centenas de pessoas impactadas pela pena de multa. “Muitas pessoas não tinham conhecimento das dificuldades que estavam tendo em suas vidas em razão da pena de multa”. Ela também destacou a importância da elaboração de material de apoio para conscientizar sobre o problema e provocar mudanças na jurisprudência.
Representando a Secretaria da Assistência e Desenvolvimento Social da Prefeitura de São Paulo, Adriano de Camargo abordou a urgência e importância de discutir os rumos da aplicação das penas de multa para pessoas em situação de vulnerabilidade social e considerar nestes casos as questões relacionadas à saúde mental. “Os processos de inclusão, primeiro, não são iguais, não são ideais”. Ele reforçou a importância de treinar equipes para a escuta qualificada, para entender especificidades e para a promoção de habilidade social.
Justiça negociada
A sala temática “Justiça Negociada e a Lei de Drogas” discutiu se as alternativas penais podem, inadvertidamente, ampliar o controle penal. Juiz do Tribunal de Justiça do Estado de Goiás, Alexandre Bizzotto enfatizou que a abordagem das políticas de drogas tem caráter discriminatório e excludente. “O que vemos hoje não é uma guerra contra as substâncias, mas sim uma ‘guerra contra as pessoas’, particularmente as pessoas excluídas, pobres e negros”. O magistrado criticou a busca pelo sofrimento como objetivo da justiça e defendeu uma abordagem que enfatize a redução do encarceramento sempre que possível.
Promotora de Justiça do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios, Fabiana Barreto avaliou que a justiça deve se concentrar em reparação, responsabilização e conciliação, não apenas em punições. “A implementação das políticas de alternativas penais não visa apenas esvaziar as prisões, mas também reduzir danos à sociedade e combater o preconceito e o estigma”.
Reflexão contra a Violência Doméstica
No segundo dia de apresentação dos trabalhos selecionados por edital, foram apresentados estudos sobre a aplicação de medidas alternativas na redução do encarceramento em casos de tráfico de drogas; prevenção de delitos a partir da consolidação democrática e a apresentação do projeto Re-socializar (MA), que busca diminuir o índice de descumprimento da modalidade prestação de serviço à comunidade. Dois trabalhos discutiram a ressocialização de homens autores de violência doméstica por meio de grupos reflexivos.
O projeto Refletir, da Central de Penas e Medidas Alternativas de São José (SC), foi um dos relatos de experiência. A iniciativa tem público-alvo composto por homens que tiveram suspensão condicional da pena de violência contra a mulher. Segundo levantamento apresentado, os participantes têm em média 31 a 40 anos; constituída, em maioria, por homem branco – com ensino fundamental incompleto. Quando denunciados por violência física contra mulher, atribuem a agressão a problemas pessoais como traição, ciúmes e uso de álcool e outras drogas. O projeto começou em 2016, com apoio da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e traz para o debate entre os homens temáticas disparadoras como a própria Lei Maria da Penha, parentalidade, saúde do homem, comunicação, controle da raiva, dentre outros.
“Recebemos homens reativos, que não entendem a proposta do projeto e creem que serão culpabilizados novamente. Utilizamos o círculo de paz da Justiça Restaurativa, lançamos o tema e fomentamos a discussão entre eles. À medida que os encontros vão acontecendo e o vínculo é formado, eles se sentem confortáveis para trabalhar as nuances da violência doméstica. O projeto nos dá fôlego para acreditar na ressocialização e na mudança efetiva desses homens para impedir que o ciclo de violência continue”, disse a psicóloga Amanda Nogara Marcon, que apresentou o projeto.
Em Belo Horizonte, a Central de Acompanhamento de Alternativas Penais também fomenta grupos reflexivos para homens autuados pela Lei Maria da Penha e, assim como Santa Catarina, vê bons resultados, inclusive por meio da exibição do documentário “O silêncio dos Homens”, que debate o modelo de masculinidade imposta a meninos e homens de forma a silenciá-los.
A advogada Núbia Cibelle Rocha Vicente contextualizou a experiência. “O projeto recebe homens muito agressivos, olhando para a equipe como estado, mas também recebe homens que querem provar que são pessoas de bem. Depois que tiramos todas as dúvidas sobre a Lei Maria da Penha, usamos o documentário. À medida que o filme vai narrando as diversas formas de exercer a masculinidade, percebemos mudanças, pois eles querem ouvir e dividir, afinal é muito pesado para eles exercerem o tipo de homem que supostamente deveriam ser. O projeto vai se desenvolvendo em 12 encontros, de 2 horas cada e percebemos verdadeiramente que a reflexão é real. Temos relatos de homens multiplicadores do projeto e de pessoas que se ressignificaram”, contou.
Intercâmbio de experiências
Com a participação de convidados estrangeiros, o último painel jogou luz em experiências internacionais e os desafios no Brasil quanto à descriminalização e as drogas. Autor do livro ‘Marihuana y otras yerbas: prohibición, regulación y uso de drogas en Uruguay’, o jornalista Guillermo Guarat destacou que é preciso entender as drogas dentro de um contexto sociopolítico e cultural, em vez de vê-las apenas como substâncias abstratas ou maléficas.
Ele relatou como se deu o processo de regulamentação dessas substâncias, em 2013, no Uruguai, partindo da presunção da inocência. Segundo o jornalista, usualmente os usuários têm de provar para os operadores judiciários que não são traficantes, porque o sistema entende que a pessoa é culpada. “O que a sociedade civil pedia era uma inversão dessa lógica, alegando que deveria ser o Ministério Público a provar que eles são traficantes. Porque é como se o réu chegasse ao julgamento já sendo comparado com todos esses estereótipos e preconceitos, como se fosse culpado. Isso acontece principalmente com pessoas que não têm recursos ou conhecimento para compreender as particularidades do processo penal.”
Diretor de relações internacionais do Instituto de Estudos Comparados em Ciências Penais e Sociais da Argentina, Leonel Postigo abordou o impacto da descriminalização das drogas nas reformas da justiça penal na América Latina, reforçando a necessidade de alternativas ao processo penal tradicional, focando na resolução de conflitos e não apenas na punição. “É essencial considerar as políticas de descriminalização, especialmente os delitos relacionados a drogas, dentro da lógica de um sistema penal democrático, direcionando esforços não para delitos menores, mas para grandes estruturas criminosas”.
O conceito de populismo penal foi abordado pelo advogado e professor da Universidade de Buenos Aires e da Faculdade de Palermo, Diego Zysman, para ilustrar uma tendência que frequentemente leva a políticas mais punitivas, muitas vezes baseadas em percepções e não em realidades. “Sempre há grupos vulneráveis que estão super-representados ou onde os efeitos da guerra contra as drogas impactam mais fortemente”, disse, citando afro-americanos e latinos – e particularmente mexicanos nos Estados Unidos, comunidades indígenas e outros grupos de estrangeiros. “Parece bastante difícil refutar que o efeito da guerra contra as drogas foi absolutamente desproporcional e especialmente preocupante com as populações mais vulneráveis que podem variar de acordo com os países, regiões ou territórios.”
A técnica de Desenvolvimento e Administração do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) Milena Soares falou sobre a linha tênue no Código Penal entre o Artigo 28 (porte de drogas para uso próprio) e artigo 33 (tráfico). “A descriminalização do Artigo 28 não tem o poder de reduzir o encarceramento em massa, uma vez que já não resulta em prisão. Assim, se estamos em um fórum que se propõe a discutir alternativas penais, precisamos abordar o tráfico, o crime que prevê pena de prisão”.
Ela reiterou a necessidade de critérios objetivos para quantidade como instrumento para reafirmar o princípio da presunção de inocência e equalizar a aplicação da lei de drogas no território nacional. “Há uma grande variação na forma como se quantifica a droga apreendida, dependendo da unidade federativa. Igualmente importante é a necessidade de um protocolo nacional de padronização das formas de pesagem e de determinação da natureza da substância”.
Encerramento
No encerramento, o secretário-geral do CNJ, Gabriel Matos, agradeceu a presença de todos em nome da ministra Rosa Weber, destacando que ela fez questão de que sua gestão fosse concluída com o evento. Agradeceu, ainda, a parceria do PNUD por meio do programa Fazendo Justiça, assim como do Ministério da Justiça e Segurança Pública. “Isso aqui é só o começo de uma longa discussão que temos que travar com a matéria da droga, que aliás está em debate na nossa Suprema Corte. Temos que trazer soluções eficazes. Já cansou esse argumento que ouvimos dos juízes de enxugar gelo. Temos que acabar com esse discurso de alguma forma dando alternativas, e essa é a proposta deste evento”.
Segundo o juiz auxiliar da Presidência do CNJ, Frederico Montedônio Rego, as alternativas penais não são uma alternativa, e sim um caminho a ser percorrido de maneira obrigatória para soluções efetivas. “O sistema hoje é altamente disfuncional, muitíssimo caro, produz consequências nefastas e duradouras e portanto é importante o engajamento na formulação de alternativas para que possamos lidar com esse tema”. O magistrado lembrou que o CNJ está em contexto de transição de gestão, e que o tema da privação de liberdade continuará como prioridade para o ministro Luís Roberto Barroso. “O ministro Barroso tem preocupações notórias com essa área, já votou inclusive no caso em julgamento no STF sobre descriminalização do uso, e certamente continuará dando toda a atenção”.
O coordenador do Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e do Sistema de Execução de Medidas Socioeducativas do CNJ, Luis Lanfredi, disse que a quarta edição do Fonape enfrentou o desafio de abordar um tema tão difícil quanto urgente. “O paradigma punitivo e encarcerador tem se mostrado bastante resiliente no sentido institucional do termo, tem permanecido forte a despeito de sinais de estagnação e de insatisfação deste modelo, muitas vezes aqui representados. Como resistir ou superar uma ideia tão persistente é uma pergunta que nos atravessa no tempo, pois pensar alternativas penais não é simples”, disse, destacando desafios para funcionamento de serviços, varas especializadas e serviços comunitários de cuidado e de apoio.
De acordo com Lanfredi, a programação buscou retratar o que é vivenciado e o que é necessário aspirar, com falas de diferentes setores da sociedade e com diferentes enfoques, desde o planejamento até a vivência, passando pela execução das políticas. “Se mostra necessário investirmos em outros paradigmas para deixarmos um mundo para traz de faz de conta, pois a política de drogas tornou-se uma política de e sobre punição”.
Texto: Isis Capistrano, Leonam Bernardo, Midiã Noelle e Natasha Cruz
Edição: Débora Zampier
Agência CNJ de Notícias
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